Eu tenho problemas.
Sérios problemas. Acho que nasci pelo avesso ou as pessoas me enganam muito
bem.
É que, sinceramente,
não tenho grandes problemas de não ter uma vida social externa agitada. Uma vez
li num livro: “Nunca sofri por causa da solidão: eu sempre sofri foi por causa
da multidão”. E não pense essa sentença como algo do tipo “sofro pela maldade
humana, pela miséria do mundo, pelas crianças que morrem de fome pelo mundo”. Não. Não era essa a intenção da frase. Ela queria simplesmente revelar que, quando
se tem uma vida social interna caótica, quando vários eus dentro de você conversam,
criam e seguem horas a fio numa discussão inventiva e calorosa, a vida com
pessoas de carne e osso se torna, inevitavelmente, dispensável.
Mas, obviamente,
existem exceções: intervalos na minha permanente rota de colisão comigo mesmo. Raros
momentos em que alguém (e não um vulto do pensamento) aparece e produz uma
atmosfera fantástica.
Há cerca de dois meses, numa quarta-feira,
aconteceu justamente um desses casos. Estava eu, como de hábito, perambulando
em uma loja de cd’s, essa espécie de loja comercial em extinção, situada em
uma ruela do centro da cidade. Em um instante, percebi uma garota, com feições
atípicas, um cabelo com uma tonalidade vermelha incomum e uma roupa mais incomum
ainda, dentro do estabelecimento. Começou a observar as prateleiras a certa distância
de mim. De soslaio, olhei para sua mão que segurava um livro e tentei ver o
título ou autor: título desconhecido, e autor, mais ainda. Até que, de forma
inusitada, ela se aproxima e me diz: “Saquei você. Sempre que, esporadicamente,
venho aqui, não é muito comum ver caras jovens. Lugares em extinção, como esse,
quase inabitados, são ótimos lugares pra pessoas que apreciam o cultivo de si.”.
Eu fiquei fascinado
pelo último trecho (“o cultivo de si”, que nada tem a ver com misantropia ou
medo de conviver com outras pessoas) e sorri para disfarçar o espanto. Meio despreparado,
disse a ela que o que ela havia falado era um pensamento interessante e que,
talvez, tivesse ligação comigo. Com ela era quase certo. Agradeci pelo
pensamento. Então, ela me disse que precisava sair para voltar a cultivar a si em
outro lugar. Porém, um pouco antes de deixá-la ir, perguntei se podia olhar o livro que
estava em suas mãos. Peguei-o e tive a ideia de presenteá-la com um pensamento, que escrevi, rapidamente, na contracapa do livro:
“Enquanto lá fora há
aqueles que procuram insistentemente o valor da própria alma, eu busco cá
dentro. Talvez tenha nascido com essa benção, com essa maldição: enquanto acham
que estou com a alma perdida, eu a encontro e encontro meu valor no meu próprio
coração.”
Depois disso, devolvi o livro. Ela saiu pela entrada da loja e sumiu da minha vista. Desde então, nunca mais tornei a encontrá-la... Talvez ela tenha conseguido habitar o próprio coração...
Depois disso, devolvi o livro. Ela saiu pela entrada da loja e sumiu da minha vista. Desde então, nunca mais tornei a encontrá-la... Talvez ela tenha conseguido habitar o próprio coração...
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