sábado, 4 de outubro de 2014

Um Caso do Acaso

Eu tenho problemas. Sérios problemas. Acho que nasci pelo avesso ou as pessoas me enganam muito bem.

É que, sinceramente, não tenho grandes problemas de não ter uma vida social externa agitada. Uma vez li num livro: “Nunca sofri por causa da solidão: eu sempre sofri foi por causa da multidão”. E não pense essa sentença como algo do tipo “sofro pela maldade humana, pela miséria do mundo, pelas crianças que morrem de fome pelo mundo”. Não. Não era essa a intenção da frase. Ela queria simplesmente revelar que, quando se tem uma vida social interna caótica, quando vários eus dentro de você conversam, criam e seguem horas a fio numa discussão inventiva e calorosa, a vida com pessoas de carne e osso se torna, inevitavelmente, dispensável.

Mas, obviamente, existem exceções: intervalos na minha permanente rota de colisão comigo mesmo. Raros momentos em que alguém (e não um vulto do pensamento) aparece e produz uma atmosfera fantástica.

Há cerca de dois meses, numa quarta-feira, aconteceu justamente um desses casos. Estava eu, como de hábito, perambulando em uma loja de cd’s, essa espécie de loja comercial em extinção, situada em uma ruela do centro da cidade. Em um instante, percebi uma garota, com feições atípicas, um cabelo com uma tonalidade vermelha incomum e uma roupa mais incomum ainda, dentro do estabelecimento. Começou a observar as prateleiras a certa distância de mim. De soslaio, olhei para sua mão que segurava um livro e tentei ver o título ou autor: título desconhecido, e autor, mais ainda. Até que, de forma inusitada, ela se aproxima e me diz: “Saquei você. Sempre que, esporadicamente, venho aqui, não é muito comum ver caras jovens. Lugares em extinção, como esse, quase inabitados, são ótimos lugares pra pessoas que apreciam o cultivo de si.”.

Eu fiquei fascinado pelo último trecho (“o cultivo de si”, que nada tem a ver com misantropia ou medo de conviver com outras pessoas) e sorri para disfarçar o espanto. Meio despreparado, disse a ela que o que ela havia falado era um pensamento interessante e que, talvez, tivesse ligação comigo. Com ela era quase certo. Agradeci pelo pensamento. Então, ela me disse que precisava sair para voltar a cultivar a si em outro lugar. Porém, um pouco antes de deixá-la ir, perguntei se podia olhar o livro que estava em suas mãos. Peguei-o e tive a ideia de presenteá-la com um pensamento, que escrevi, rapidamente, na contracapa do livro:

“Enquanto lá fora há aqueles que procuram insistentemente o valor da própria alma, eu busco cá dentro. Talvez tenha nascido com essa benção, com essa maldição: enquanto acham que estou com a alma perdida, eu a encontro e encontro meu valor no meu próprio coração.”

Depois disso, devolvi o livro. Ela saiu pela entrada da loja e sumiu da minha vista. Desde então, nunca mais tornei a encontrá-la... Talvez ela tenha conseguido habitar o próprio coração...

Nenhum comentário: