quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Sobre Pontes e Abismos (parte 1)

Segunda-feira. Temperatura noturna amena. Noite incomum para tentar fazer alguma coisa incomum.

Mesmo assim, eu havia recebido um e-mail no dia anterior de um antigo colega de faculdade me convidando para prosear sobre um lance que havíamos conversado cerca de dois anos atrás e que, só agora, dizia ele no e-mail, havia percebido o sentido daquilo na vida dele.

Não que fosse muito incomum, para mim, receber e-mails, mensagens ou telefonemas de pessoas com quem eu havia tido certa conversa sobre determinado assunto e que, depois de um tempo relativamente considerável e após um silêncio inquietante sobre o que havíamos conversado, voltavam a me procurar como se tivessem descoberto a pólvora. “Preciso falar com você. Urgente!”. “Ok, marcado, nos encontramos no local”, minha resposta recorrente. Afinal, gosto disso, sempre fui meio psicólogo mesmo, e me deparar com crises pessoais alheias me estimula de certa forma. Isso pode soar meio sádico de minha parte (do tipo “a dor do outro me estimula”), mas, se isso for sadismo, é de um tipo mais interessante, que me liga quase que fraternalmente ao outro.

Mas, como eu vinha falando, o fato de alguém me contatar tempos depois envolvido em alguma crise/dilema não era incomum. O incomum residia em outros fatos. Primeiro, o tom formal do e-mail. O Fábio parecia estar escrevendo para algum desconhecido ou para alguém com quem ele tinha tido pouco contato. E esse não era, absolutamente, o caso da minha relação com ele. Havíamos passado, durante a nossa graduação em Jornalismo, quase 5 anos nos encontrando 5 dias por semana pelo menos. Éramos da mesma turma e, nos primeiros 3 anos de curso, tínhamos um contato permanente, para além até de assuntos acadêmicos (provas, projetos, trabalhos, enfim). Claro que nos dois últimos anos de curso havíamos nos afastado um pouco, principalmente em virtude de nossas visões diferentes sobre as coisas terem ficado cada vez mais evidentes. Além disso, o Fábio havia arranjado uma namorada nesse momento e eu continuei com minha vida amorosa donjuanesca.

Mas acho que o momento crucial para esse afastamento foi a conversa que tivemos e que, agora, o Fábio queria retomar comigo. Basicamente, umas viagens sobre Filosofia e sobre a incerteza das coisas. Na época, o Fábio tinha muitas certezas, era católico, acreditava na firmeza dos valores, e eu era um tipo cínico e cético. O choque de visões ficou muito mais acirrado nesse dia. Apesar disso, nunca tive muito problema em conviver com pessoas com visões muito diferentes das minhas. Como todo bom cético, eu não me levava muito a sério. Mas o Fábio parece ter se ressentido com a nossa conversa. Ficou uma semana sem olhar para minha cara e, nos dias posteriores, se limitou a me cumprimentar com um “Oi” ou um “Tchau”.

E, agora, do nada, o Fábio queria conversar comigo. Porém, como se fôssemos estranhos: “Envio-lhe esse e-mail, caro Petrus, convidando-o para uma conversa sobre o referido assunto. Sei que vossa pessoa possui grande maestria no plano das especulações filosóficas. A conversa é de extrema urgência e importância para a minha pessoa. Desde já, peço perdão pelo incômodo e agradeço-lhe a atenção. Aguardo sua resposta. Ass.: Fabio Malta.”. “Peço perdão pelo incômodo”? “Vossa pessoa”? “Que porra é essa?”, pensei.

O segundo ponto estranho do e-mail era o local do encontro: um clube noturno que iria inaugurar justamente um dia depois, em plena segunda-feira, e se localizava no limite leste da cidade, entre o nada e o lugar nenhum.

Pela curiosidade, relevei as “estranhezas”, aceitei o convite e respondi ao e-mail como de praxe. Às 22 horas, eu estaria no local combinado.

Dez da noite e eu estava em frente ao local como acertado. Resolvi entrar. Um frisson correu pelo meu corpo. Parecia que eu estava passando por uma espécie de torpor assim que entrei no Clube Sun-House, situado entre a rua Onório Silvestre e o antigo Beco do Entrudo.

A iluminação do local era bem sugestiva, uma coisa meio turva, meio mortiça, que instigava um certo estado de desnorteamento. Logo no início do salão, havia mesas empoeiradas distribuídas confusamente, organizadas por alguém não muito preocupado com noções de simetria. Percebi também mais uma coisa: um som que vinha de um local mais aos fundos - parecia ser de um espaço onde, na maioria das boates noturnas, as bandas convidadas tocam. Apesar de não ter ouvido nada quando eu estava do lado de fora, dentro do Sun-House o som parecia mil vezes amplificado. Ondas sonoras impactavam meus tímpanos e socavam meu rosto.

“Five to one, baby/ One and five... No one here gets out alive… Now, you get yours and I get mine/ gonna make it baby if we try…”. Consegui identificar esses versos e, em meio a uma vertigem que só crescia, lembrei de que se tratava de versos de uma das músicas do The Doors. De repente, um estrondo ecoa pelo salão:
- “Geeeet Together one moooooore tiiiiiiiiiiiiiimeeeeeeeeeeeeeee/ Geeeet Together one more tiiiiiiiiiiimeeeeeee… WwwwwwwwwwwwwoooooooooWWWWW!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!”

Era o ápice da canção. Um grito lancinante que contagiou as pessoas que estavam próximas a mim. Elas começaram a se contorcer emitindo grunhidos informes, debatendo-se umas contra as outras. Eu fui empurrado para dentro do furacão de pessoas. Senti uns golpes no abdômen e algumas mãos que me apertavam pelo corpo todo. Os braços, as pernas, os ombros, o peito, o pênis. Nada escapava. No meio dessa confusão, isso eu já mergulhado numa espécie de transe integral, senti lábios tocarem os meus. Percebi que conhecia aquele jeito de tocar na minha boca. Era Sofia. A porra-louca que eu havia conhecido e transado num dos meus últimos porres homéricos, mas que havia sumido do mapa no último mês e que eu só soubera de boatos sobre o seu paradeiro: Rio? Teresina? Recife, talvez?

Continuei submerso no Vesúvio humano por mais algum tempo e, não sei se porque havia ficado inconsciente por algum tempo ou se porque as pessoas realmente, de súbito, haviam se afastado, me dei conta de que a música havia cessado e eu estava parado, espalhado pelo chão sujo do Clube. Esfreguei meus olhos para ver melhor o que estava ao meu redor e, ao afastar os dedos da visão, senti alguém (provavelmente, Sofia) pôr as mãos na minha boca. Simplesmente, apaguei depois disso. Não me lembro de mais nada. Quando recobrei um pouco da consciência, estava sentado em uma cadeira velha nos fundos do Clube. Havia dois homens me fitando. Sofia ajoelhou-se para me encarar olho-no-olho. “O que está acontecendo?”, perguntei com uma voz ainda sonolenta e sussurrante para Sofia. Ela me olhou, afastou-se, parou próximo aos dois homens. Passando pelo meio dos três, apareceu Fábio, vestindo preto dos pés a cabeça, usando óculos escuros, e fumando alguma coisa (não arrisco a dizer que era só cigarro).

- Saudações, caro Petrus, disse ele se aproximando.
Tentei me levantar.
- O que está acontecendo? Por que eu estou nessa merda de cadeira? E esse clube parece mais uma espelunca do que um clube que está sendo inaugurado...
- Ora, ora... Hehehe... Quantas perguntas... Enigmáticas?
- Cara, vamos conversar civilizadamente, mas, primeiro, vocês me deram alguma coisa para tomar?
- Ok... nossa conversa será rápida. Podem sair vocês três, falou virando-se para Sofia e os dois homens. Ao saírem, Fábio começou.

Continua...

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